Movimento para integração da comunidade
LGBT+ na Igreja Católica Portuguesa
TESTEMUNHOS
"Dar-lhes-ei um coração novo e infundirei no seu íntimo um espírito novo. Arrancarei do seu corpo o coração de pedra e dar-lhes-ei um coração de carne"
Ez, 36,26
Miguel
Salazar
22 anos, estudante de Mestrado de Tradução e Interpretação Especializadas.
Sofrendo na pele uma visãohomofóbica da Bíblia
O meu nome é Miguel Salazar, tenho 22 anos e sou estudante de Mestrado de Tradução e Interpretação Especializadas.
Sou também evangélico, ainda que neste momento não esteja inserido em nenhuma congregação. Não é uma questão de falta de vontade ou de achar que posso exercer a minha fé sozinho, mas desde que me dissociei da Assembleia de Deus em 2020 não voltei a encontrar um local onde me sinta totalmente aceite. Não é uma opção voltar para um meio que, apesar dos imensos momentos de felicidade que me trouxe, colocou acima da minha dignidade uma visão homofóbica da Bíblia, impedindo-me de exercer qualquer tipo de função e contribuindo para um sofrimento que sei não ser singular naquele local.
Cresci em bancos evangélicos, toda a minha educação esteve e está fundamentada em valores evangélicos e até hoje mantenho muito daquilo que me foi transmitido. Contudo, comecei a interrogar-me sobre questões relacionadas com os Direitos Humanos: o papel das mulheres na igreja; a forma de encarar e incluir membros com orientações sexuais não-hétero e identidades de género não-cis, entre outros assuntos que são considerados, até certo ponto, heréticos.
Sendo também socialista, acabei por entrar na política movido inicialmente por fazer parte da comunidade LGBTI+ e no ano em que foi aprovada a adoção por casais do mesmo sexo. Desde aí (há seis anos) estabeleci dois objetivos: enquanto evangélico, conseguir transmitir a ideia de que a mensagem de Cristo não é opressiva ou discriminatória; enquanto socialista, lutar pela minha comunidade e protegê-la, mesmo que as diferentes formas de ataque venham de meios religiosos.
O tempo que vivi debaixo do mesmo teto com pessoas religiosamente fanáticas, militantes de extrema-direita e movidas contra a chamada “ideologia de género” envolveu insultos, agressões físicas, tentativas de terapias de conversão para me curarem, censura de redes sociais e de qualquer material alusivo a questões LGBT que pudesse ter em casa, invisibilização da minha orientação sexual em frente a pessoas que convidavam para ir a nossa casa, discursos ofensivos sobre a minha comunidade em momentos festivos como aniversários, Natais, Páscoas, etc..
Lidei diariamente com uma progenitora que desde que se levantava até ir dormir escrevia e gravava vídeos com conteúdo anti-LGBT, escrevia para a comunicação social, era convidada para ir à televisão, escrevia livros e viajava pelo país para participar em congressos, manifestações, colóquios, conversas, tudo sempre com o mesmo propósito: espalhar e acentuar a ignorância e o ódio contra pessoa como eu, a quem ela deu à luz.
Tudo isto provocou em mim indícios de depressão, ataques de ansiedade, pensamentos suicidas, entre outras consequências que hoje, mesmo já sendo independente, ainda persistem.
Assim sendo, a principal mensagem que pretendo transmitir com isto é a seguinte: é possível ser gay e ter fé, é possível ser gay e seguir os ensinamentos de Jesus e não há uma única palavra proferida por Jesus que condene a comunidade LGBT, sendo que Ele mesmo foi quem a criou.
O chão fugiu-me debaixo dos pés!
Cresci numa cidade pequena e simpática, no seio de uma família tradicional, constituída por pais jovens que deram o seu melhor para me criar a mim e ao meu irmão mais velho. Estudei num colégio jesuíta que, durante 13 anos, se tornou a minha segunda casa. Neste lugar cresci rodeada de amigos, professores disponíveis e atentos, e jesuítas inspiradores. Participei em todas atividades extracurriculares e da vida de pastoral do colégio, e foi assim que fui conhecendo Jesus, cada vez mais curiosa pela Sua vida e empenhada em cultivar uma amizade forte. Em adolescente, a oração já fazia parte do meu dia-a-dia. A minha fé ia germinando acompanhada por um estado de paz e vontade de servir os outros e a Igreja.
Escolhi enfermagem motivada por este sentido de entrega, e, quando conclui o curso, parti em missão para Angola como voluntária numa ONGD católica. Tudo fluía na minha vida num estado de graça e consolação. Jesus acompanhava-me em todos os meus passos, e certamente nunca deixou de me acompanhar, contudo, no meu regresso de missão senti-me mais sozinha que nunca.
Os últimos meses de missão tornaram-se áridos, os trabalhos não fluíam, e uma estranha conexão com uma amiga ia crescendo. Digo estranha porque sentia uma atração magnética e um encantamento, que antes só tinha sentido por rapazes. Quando percebi que era correspondida neste sentimento, entrei em pânico. Desceu sobre mim uma sensação de culpa e uma dor que esmagava o meu peito e o meu estômago. Durante meses fugi e neguei este amor que sentia, porém, quanto mais fugia, mais o amor crescia dentro de mim. Até que um dia deixei de fugir e permiti-me vivê-lo.
Foi nesse momento que a minha mãe foi diagnosticada com um cancro terminal e todas as minhas questões afetivas foram colocadas numa caixa, pois era tempo de cuidar e despedir-me dela. A sensação que tenho é que a minha vida estava num harmonioso ritmo de carrossel e, de um momento para o outro, entrei numa montanha-russa do Indiana Jones. Este poderia ter sido um tempo em que a fé me salvaria, contudo, fiquei muito chateada com Jesus, porque vivia tão perto Dele, entregava a minha vida em missão e, de repente, o chão fugiu-me debaixo dos pés.
Pode parecer cliché dizer, mas o tempo cura tudo. Depois de passar por dias obscuros, estes começaram a ser mais fáceis e leves, as feridas começaram a sarar, e chegou o momento de abrir as caixas esquecidas no coração. O preconceito e a culpa começaram a cair e novos amores surgiram, levando a que, finalmente tenha assumido para mim mesma a minha atração por pessoas do mesmo género.
Vergonha por gostar de pessoas do mesmo género
O passo seguinte foi o processo de “coming out”. Senti que foi literalmente um momento de sair de mim e conectar-me com os outros através da minha nova verdade. Alguns amigos estranharam, outros ficaram curiosos, mas todos me acolheram. O desafio maior foi certamente assumir-me à minha família nuclear. Nesse momento começaram a surgir os primeiros sentimentos de rejeição e julgamento. É duro saber que a minha felicidade causa desilusão e constrangimento, e é especialmente difícil o tempo de espera que o outro precisa de ter para digerir a minha verdade e acolher e amar-me como sou.
Ao longo deste processo, senti também necessidade de criar pontes com a Igreja. Saber o posicionamento da Igreja acerca deste tema, causou em mim, de forma inevitável, um afastamento e uma sensação de rejeição. Contrariamente ao esperado, fui sempre muito bem acolhida por todos os padres amigos com quem fui partilhando os meus processos interiores. Esta abertura e acolhimento foram fundamentais para conseguir integrar a fé e a espiritualidade na minha vida. Contudo, por muitos bons concelhos recebidos, senti que a minha fé se alimentava da minha amizade com Jesus, relação esta que tinha sido ferida nos anos de maior turbulência da minha vida.
O vazio que a ausência desta amizade deixava começava a ser cada vez mais difícil de lidar, e foi então que um dia decidi fazer exercícios espirituais. Ao longo da minha vida já tinha feito vários retiros, mas este teve um sabor especial. Foi um tempo de mergulho na minha história e de limpar e harmonizar o meu coração. O primeiro dia foi o mais difícil, porque percebi que ainda não estava em paz comigo e que, de alguma forma, me sentia envergonhada por gostar de pessoas do mesmo género, como se isto fizesse com que eu perdesse valor ou a minha dignidade.
Foi particularmente duro reconhecer estes sentimentos dentro de mim, uma vez que eu já me considerava uma pessoa resolvida com a minha sexualidade. Depois de escavar mais fundo, tomei consciência que estes sentimentos resultavam de processos de culpa, rejeição e julgamento, aos quais fui exposta durante vários anos. Apesar disto, neste encontro com Jesus, fui inundada de paz e alegria que me confirmaram que Ele me ama assim, tal e qual eu sou. Por fim, o que me salvou foi o Seu amor!
Durante este processo de abraço espiritual, consegui realizar o meu caminho de aceitação pessoal. Além disso, percebi que a sensibilidade e a vulnerabilidade que é ser homossexual perante a sociedade faz com que eu esteja mais alerta para as vulnerabilidade dos outros, tornando-me, assim, mais atenta ao outro.
Apesar dos contraditórios posicionamentos da Igreja Católica em relação à comunidade LGBTQIAP+, foi o amor de Jesus que me ajudou a realizar o processo de autoaceitação, amor este que deveria guiar a comunidade Católica, em vez do medo e da rejeição ao novo e desconhecido. É por esta, e por todos os outros motivos possíveis, que considero de enorme importância que ocorra um processo de sensibilização da Igreja em relação ao acolhimento da nossa comunidade. Esta é a missão com a qual me comprometo trabalhar, para que esta integração esteja cada vez mais próxima de se tornar realidade.
Rita
Quintela
31 anos, enfermeira e terapeuta de medicina tradicional chinesa
Rui
45 anos, artista plástico, músico (cantor), tradutor e formador
Aceitar-me com o coração, assim, sem “Ses”
O meu processo da “aceitação da homossexualidade” começou muito naturalmente pela aceitação dos outros. Não me estou a referir apenas à questão da homossexualidade, estou a falar da aceitação em geral do Outro, na sua particularidade – as pessoas são diferentes umas das outras, cada qual tem as suas características, o seu feitio. Quando, na nossa vida, “trabalhamos” diariamente o aceitar o outro ou a outra, como ele ou ela é, em vez de desejar que ele ou ela seja como nós queríamos que fosse, estamos a empreender um trabalho válido que, no meu caso, tornou a aceitação da homossexualidade dos outros numa consequência muito natural, espontânea e, até, evidente.
Daí até à aceitação da homossexualidade em mim, foi um percurso muito mais longo. Porque uma coisa é nós aceitarmos os outros como eles são, outra coisa – para mim, muito mais complicada – foi eu aceitar-me a mim mesmo como eu era. E esta aceitação foi, numa primeira fase, uma aceitação puramente racional, no campo da inteligência. Só num terceiro momento é que, não só aceitei qualquer coisa em mim, mas houve uma verdadeira aceitação de mim, ou seja, passei de uma aceitação intelectual – de pensar: “OK, eu sou assim mesmo, não há muito a fazer!” –, para começar, com o coração, a aceitar-me assim.
Esta aceitação de mim é uma aceitação total de mim, como um Ser criado por Deus e como um Ser amado por Deus. Este processo de aceitação é também um processo de conversão – no meu caso foi, e acredito que na maioria dos homossexuais cristãos também seja. Antes, o meu amor por Deus estava ainda muito próximo de um amor-temor, toldado pela culpa, cheio de escrúpulos; não era bem medo – a minha experiência de fé não passou pela sombra do medo –, mas era um amor muito baseado na sensação da culpa ou da não-culpa e, por isso, limitado por ela. O que me levava mesmo a considerar-me não merecedor do amor de Deus. Achava que Deus amava todas as pessoas, mas, se calhar, a mim não tanto. E este foi o meu grande pecado, pois era falta de fé no poder e na dimensão deste amor de Deus.
Quem ama deixa voar
Esta conversão (esta aceitação em mim) é um processo que já começou há algum tempo, mas que ainda dura, e corresponde à descoberta e ao verdadeiro acolhimento do amor de Deus. É passar de um conceito passivo a uma fé activa. Talvez resida aqui o meu grande crescimento e maturação a nível de fé.
Este amor de Deus – que eu, de facto, fiquei a conhecer – é um amor completo, incondicional, inclusivo e libertador. Um amor completo, porque total, uno, fecundo e pleno, que sacia. É um amor incondicional, sem “Ses”: “eu amo-te se fizeres isto”, “eu amo-te se fores assim”. É um amor inclusivo, um amor de Deus por aquilo que eu sou: e eu sou alma, sou espírito, sou razão, sou sensibilidade, sou também afectividade, sou corpo e também sou sexualidade – muitas vezes falta ao discurso da Igreja falar com naturalidade deste amor, deste amor que me ama inteiro; fala-se muito dos primeiros tópicos (alma, espírito, razão...), fica-se pelo lado espiritual não incarnado: os últimos ficam sempre na gaveta, são esquecidos ou desvalorizados.
É um amor libertador: quem ama não aprisiona, quem ama deixa voar, quem ama deixa ser, quem ama deixa tornar-se e quem ama deixa crescer. E isto é a grande dificuldade em todas as formas de amor, começando pelo amor de mãe e de pai. Quem é pai ou mãe sabe que, a um determinado momento, tem de deixar o seu filho ou filha voar, deixar que seja ele mesmo ou ela mesma, e não quem (ou aquilo que) queria que fosse. Se isto não acontecesse, os filhos não passariam à idade adulta: seriam seres humanos sempre dependentes da opinião e da aprovação dos pais, viveriam apenas segundo as expectativas e escolhas destes. Creio que o mesmo se passa com o amor de Deus e, por isso, descobri-o como libertador. Compreender o amor de Deus, levou-me a tentar amar-me como sou não como idealizava ser, ou seja, permitiu-me passar do plano das ideias (e dos ideais) para o plano da realidade.
Amarei o próximo como a mim mesma?
Sou a Madalena, cristã, casada e mãe de 2 filhos. Fui convidada há tempos pela minha irmã Teresa (uma das fundadoras do Sopro e parte integrante da equipa da sua coordenação) para escrever um testemunho. Convite este que recebi e aceitei com muita alegria.
Acredito bastante neste projecto e no propósito que faz mover toda esta organização. É um movimento que me inspira por ser, verdadeiramente, feito “de e para pessoas”. Para muitos este último ponto pode parecer uma constatação óbvia ou desprovida de nexo, mas para mim não é nada óbvio e por isso faço questão de realçar o “de e para pessoas”. Até então não tinha conhecimento de uma organização que acarinhasse temas tão estruturantes como a sexualidade humana e que se ocupasse de tantas outras pessoas que vivem anos (talvez uma vida) em fronteiras onde há tanto sofrimento, solidão, incompreensão e falta de amor. Fronteiras estas criadas e alimentadas por nós diariamente, nas mais pequeninas ações do dia-a-dia para com o nosso próximo, e até mesmo para connosco. Fico muito feliz por saber que muitos de nós (cada vez mais) se fazem alimento para tantos outros esquecidos, rejeitados e ignorados pela sua diferença. Somos todos diferentes e todos (sem excepção), por sermos tão humanos, somos tão sensíveis e reactivos a todas estas diferenças entre nós. Diferentes formas de amar, de estar, de pensar, de agir, de ser, de se mover, de se vestir, de me conectar e até de comer, por vezes (muitas vezes) geram barreiras (duras e dolorosas). Acho que só mesmo através do Amor que é (também) essência em cada um de nós, é que é possível fazermos pontes e estradas e vias de comunicação entre todas estas partes humanas, que habitam em nós.
Quando me deparo com perguntas básicas (que eu própria sinto em mim) sobre preconceito, inclusão e aceitação do outro, ou até com as mais complexas como “Amarei eu o próximo como a mim mesma?”, quase sempre acabo na mesma resposta - acho que não! Há muitas coisas que me transcendem. Coisas que não compreendo, outras que não aceito, outras que questiono, outras que rotulo. Há coisas em mim que espelho nos outros e outras que se espelham em mim e que me doem. Porém, não desisto de encontrar uma outra resposta (sincera e sentida) que um dia me deixe mais verdadeiramente feliz e realizada. Sinto-me todos os dias a ser criada e moldada (espero que nas mãos de Deus) para ser cada vez mais Amor a um próximo, que por algum motivo eu exclua porque estou limitada e cheia de fronteiras internas. E atenção, nem sequer estou a falar de questões fracturantes, como aquelas às quais a Sopro responde, mas de tantas outras banais que se geram em nós e nas nossas relações humanas.
Com este testemunho quero apenas partilhar o que a minha experiência pessoal me tem mostrado e onde acho que pode estar a génese de tantos abismos entre todos nós. As grandes fronteiras e o preconceito começam no interior de cada um de nós. Há fronteiras e fragmentos dentro de nós que se manifestam fora de nós e que se espelham no outro e isto é impeditivo de Amor e de acolhimento - de um outro que é diferente de mim.
O coração não engana
Talvez por ter isto presente em mim e de saber-me também (humildemente) limitada, mas com uma vontade imensa de amar, eu tenha escolhido acompanhar, acolher, aceitar e respeitar a relação homossexual da minha irmã Teresa, bem como os seus desejos e propósitos de vida, com a naturalidade própria do amor. Acompanhei (e acompanho) a vida da minha irmã e da sua mulher (de quem eu gosto muito – mesmo!) e torço muito por esta família que se está a construir e a moldar nas mãos de Deus. As duas são um exemplo muito importante e inspirador para mim, na sua relação e na sua individualidade.
Assisti, há uns anos, bem de perto ao sofrimento da minha irmã e da sua fragmentação interna (relacionada com a sua sexualidade). Durante este acompanhamento optei por deixar o meu coração comandar mais do que a cabeça, pois o coração não se deixa enganar (ao contrário do que muitos dizem) – ama, sofre, tem compaixão, é empático, compreende e só deseja e luta para que tudo passe e que os pedacinhos se voltem a unir. A cabeça, porém, é confusa, complica muito, faz imensas perguntas, julga, proclama verdades (sem sentido) é preconceituosa, é uma chata (muitas das vezes). É possivelmente uma das grandes responsáveis pelas fronteiras e abismos que por vezes se criam entre as pessoas. Não querendo ser injusta, pois de muito nos vale a nossa cabeça. Mas precisamos tanto do coração!
Sinto que só consigo acompanhar a Teresa desta forma pois acredito que é Deus a falar em mim. Tenho fé neste Deus que nos cria a cada segundo da nossa vida e que nos ama assim, com todos os pedacinhos unidos que se fragmentam de vez em quando e que se unem de novo pelo Seu amor em nós e através de nós.
Resta-me suspirar e dizer - Quem me dera conseguir dar sempre ouvidos a esta voz interior vinda de Deus! Principalmente para as questões mais pequenas do dia-a-dia e na gestão de tantas outras relações que tenho (principalmente as mais difíceis).
Talvez quando assim for - e eu permita um estado permanente de Deus em mim - eu tenha encontrado a resposta (a mais sincera e feliz) a todas as minhas perguntas sobre as nossas diferenças humanas. Talvez nesse dia consiga dizer que SIM! Amo verdadeiramente o outro na sua individualidade e diferença. “Estou a caminho…"
Madalena
Proença
37 anos, gestora de produto na área de engenharia biomédica
Victoria
Roldán
Mãe trans de três filhos, professora de matemática e católica
Se não fosse a fé, já estaria morta
Olá! O meu nome é Victoria. Sou mãe trans de três filhos e cristã praticante e venho dar meu testemunho de vida e fé, porque, em grande parte, uma não pode ser entendida sem a outra.
Comecei a vestir-me de menina, quando tinha uns 9 anos de idade. Ia à casa de banho, fechava o trinco e vestia as roupas que a minha mãe tinha deixado no cesto de roupa suja. Mas, antes disso, ainda me lembro de brincar, aos 5 ou 6 anos, com uma folha de papel com botões desenhados, que era uma máquina que me transformava em menina, ora o cabelo, ora as mãos, ora o peito.... Enquanto apertava os botões, aos poucos, ia-me transformando em menina. Essa é uma das minhas primeiras lembranças, a brincadeira com aquele pedaço de papel.
Os meus pais acabaram por me descobrir e a verdade é que não aceitaram bem ou mal. Simplesmente, não sabiam o que fazer. Concluíram que isso era uma fase, que eu superaria e que deveria fazer o que quisesse, mas o importante era que ninguém descobrisse. Tentavam fechar os olhos quando as meias da minha mãe apareciam rasgadas ou desapareciam, ou noutro tipo de coisas, tornando a minha sexualidade invisível, como se não existisse.
Pessoalmente, o que mais me doeu neste assunto, foi o facto de que eu tinha um instinto maternal muito marcado, queria ter filhos, muitos filhos, mas via isso como um problema sem solução. Pensei que, se me tornasse trans, nunca poderia ter filhos, e se me casasse e tivesse filhos, não seria eu. Achei que tinha de escolher entre ser mulher ou ser mãe, e era um dilema mortal que torturava a minha alma.
Em relação ao meu relacionamento com Deus, a princípio pensei que a transexualidade era uma espécie de teste ou tentação que eu havia colocado em mim mesma, a que tinha de resistir, mas na qual inevitavelmente acabava caindo de novo e de novo. Quando tinha 18 ou 19 anos, acabei por me aceitar como travesti, mas, para mim, a transexualidade ou travestismo era uma espécie de castigo ou laje que Deus havia colocado em mim, por algum motivo. Naquela fase da minha vida, que durou mais de 10 anos, acreditava em Deus e orava e falava com Ele, mas principalmente para reclamar: porquê eu? Mesmo assim, sentia-me amada por Deus e, de facto, se não fosse pela fé, estaria morta.
Frequentemente, tinha pensamentos suicidas, pois apesar de me aceitar como travesti, não via sentido em nada, nem futuro, com aquela dualidade mulher ou mãe, que parecia impossível de alcançar, e a fé era a única coisa que me mantinha viva naqueles anos, fé de que haveria alguma razão para minha transexualidade, fé de que Deus me quisesse para que algo acontecesse, fé de que, se eu me matasse, iria para o inferno de cabeça. Então, o suicídio também não era uma saída. Fé que Cristo sofreu muito na cruz, e que a transexualidade foi a cruz que eu tive de sofrer. E também a fé que Deus me amou, que eu sentia isso dentro de mim, e que tudo, de alguma forma, faria sentido.
Mas foram anos muito difíceis. E, sem fé, com certeza, não teria conseguido, porque foi com fé e quase não consegui. Nesse sentido, não posso deixar de lembrar que o suicídio é uma causa muito real e muito verdadeira de morte para pessoas LGBT, especialmente pessoas trans, e por isso é essencial que haja um apoio claro para elas, principalmente desde a infância e a adolescência, que são, de longe, os anos mais complicados.
Os armários matam
Da minha parte, tive sorte. Deus sorriu para mim e protegeu-me, apesar das minhas dificuldades. Conheci uma rapariga que me aceitou como eu era, com o meu travestismo/transexualidade, que nunca lhe escondi. Apaixonámo-nos, casámos, tivemos filhos, mas o armário continuava ali, sufocando-me. Sabia que, se saísse do armário, iria perdê-la, porque ela aceitava essa parte em particular, mas nunca em público, e eu não queria perdê-la. Porém, não poderia continuar com a farsa por muito mais tempo. Eu, simplesmente, não podia. Nem para ela, nem para meus filhos, nem para ninguém.
O armário, de mais de 30 anos, em que estava presa e todos os complexos, traumas e falsidades a ele associados estavam a sufocar-me e até a afetar a minha saúde. E é que os armários matam, tenho isso muito claro. Matam, tirando-te o desejo de viver, de desfrutar de uma vida que não é realmente aquela que queres, aquela que sabes que te pertence. Matam, fazendo-te sentir culpada por viver uma vida dupla, de ser uma farsa, de enganar os teus amigos, os teus conhecidos, todos aos quais escondes o teu verdadeiro eu no armário. Matam e sufocam como as verdadeiras prisões que são, e é por isso que, se realmente queremos salvar vidas, é essencial que abramos armários, e cada um(a) possa viver a sua vida como ela é.
Comecei a ter crises de ansiedade e problemas de equilíbrio, onde tudo começou a girar. E acabámos por nos separar. Mas eu ainda não tinha certeza do que Deus queria de mim. Devia sair do armário ou a minha transexualidade era a cruz que eu deveria continuar a sofrer em silêncio? E então, ao ler a Bíblia, deparei-me com a parábola dos talentos e, naquele momento, percebi que o verdadeiro talento que Deus me deu e que mantive enterrado era a minha transexualidade, e que era isso que eu tinha de trazer à luz e usar. Fui saindo do armário e Deus não parou de me acompanhar, confirmando que eu tinha tomado a decisão certa.
Apesar do que temia, não tive problemas no trabalho, nem com amigos ou familiares próximos, nem com meus filhos. É verdade que algumas pessoas tiveram mais dificuldade em processá-lo do que outras, e que estavam muito confusas com o nome, no início, mas, em geral, os grandes medos e problemas que eu temia nunca se tornaram realidade. Aliás, até me surpreendi com a facilidade com que algumas pessoas me aceitaram, e o facto é que o problema da transexualidade está principalmente nas nossas cabeças, na transfobia internalizada, nos traumas e complexos que ela gera. Mas não foi só a ausência de problemas, mas Deus, como sempre, sorriu para mim e fez-me conhecer muita gente maravilhosa.
Pouco depois de sair do armário, conheci a Icthys, uma associação católica de pessoas LGBT da minha cidade [Sevilha], onde pude viver a minha fé de uma forma muito mais plena, sincera e pessoal do que antes. E também conheci a minha parceira, outra mulher trans, quando, depois do divórcio, eu achava que ninguém mais se interessaria por uma pessoa com a minha idade, com três filhos e que também era trans, aqueles complexos que eu ainda tinha, apesar de ter saído do armário. Porque sair do armário é apenas o primeiro passo, é superar o medo e poder apresentar-se e viver como se é, diante das pessoas que se ama. Mas então há o passo de remover gradualmente toda essa transfobia e homofobia internalizada que se vem acumulando ao longo dos anos.
E isso é algo que é muito gradual e que vai passando à medida que finalmente consegues viver a tua vida naturalmente e percebes que não há nada de errado ou pior no teu género ou sexualidade, pelo contrário, que, em muitos aspectos, a transexualidade é uma dádiva, um autêntico dom de Deus. E quando a vives como tal é quando toda a tua vida começa a fazer sentido e a brilhar com uma luz que ilumina os que estão ao teu redor.
Eu gostaria que este testemunho servisse para dar esperança de que, com a ajuda de Deus, tudo é possível, que se pode ser trans e mãe, trans e cristã, ser LGBT e sentir Deus no coração e que não devemos sentir-nos obrigados a escolher entre a nossa fé e nossa identidade ou orientação, porque são perfeitamente compatíveis e há muitos, muitos, crentes LGBT, embora seja uma realidade que permanece invisível.
Não somos uma agenda, somos cristãos comprometidos com a Igreja
Desde muito cedo senti uma imensa conexão, necessidade e vontade de me aproximar, adorar e amar Deus. Tal como, imagino, a grande maioria de nós, sempre senti o peso da consciência da “diferença” e do desvio do padrão. Cresci com receio de que esta fosse um impedimento para que me sentisse amado, integrado e à altura das expectativas dos demais.
A minha fé sempre foi o meu refúgio do bullying e da discriminação. Foi tudo aquilo que cobriu, à data, um vazio de identidade imposto.
Com 17 anos assumi-me enquanto gay à minha família. O processo de “coming out” é sempre marcante, não só pelo que encerra, mas, sobretudo, pelo que inicia. É o começo do questionar da nossa identidade. Sabendo que, finalmente, podemos ser nós, sem fingir, coloca-se a questão: mas, então, afinal, quem somos?
Foi como se me sentisse sem tapete, sem saber bem para onde ir, esperando tudo o que pudesse surgir na nova realidade em que mergulhava. Foi no Verão seguinte que o confronto entre a minha fé e sexualidade emergiu de forma mais intensa. Até então tinha mais ou menos ignorado esse debate.
Chegado a um momento de aflição senti medo de não ser digno do amor de Deus, da Sua ajuda, da Sua orientação, da Sua salvação, pelo facto de ser homossexual. Procurei todas as respostas possíveis, isoladamente. Marcavam-me uma tristeza e solidão profundas porque sentia que não podia viver, que nunca seria feliz, se não tivesse Deus na minha vida. Tinha um medo profundo de poder não O ter a 100% comigo. Mesmo reconhecendo que me amava, manifestava-se, inconscientemente, sobretudo, a crença profunda na própria indignidade, incapacidade de ser amado, ou, simplesmente, a ideia que nos é imposta de que temos de alcançar o dobro da perfeição para sermos igualmente considerados, expiarmos a nossa “corrupção inata” e provarmos, verdadeiramente, o nosso valor.
Era quase um entendimento de que as dificuldades na minha vida partiam de um “não comprometimento a 100%”, que era causa direta da minha essência. Trauma de saber que não vivo sem Ele, mas a minha condição me impede que o faça.
Sentia-me algo cansado de um comportamento crescentemente polarizado, tribal, distante da compaixão e da empatia que muitas vezes experienciamos por parte da Igreja a que pertencemos. Cansado de uma sociedade que objetifica o outro e que procura no rótulo e no radicalismo um veículo de alimentação do ego, nem que, para isso, se despersonalize o ser humano.
Refiro esta parte mais conturbada do meu percurso, precisamente, para realçar a importância da missão de um projeto como o Sopro e quão relevantes são todas as portas que se possam abrir para os cristãos LGBT. Não somos uma agenda, nem somos um lobby, somos pessoas, somos cristãos, somos membros do Corpo de Cristo, igualmente comprometidos com a unidade e o amor à Sua Igreja.
As marcas de uma caminhada solitária despertam, em mim, a necessidade de partilhar a minha experiência e fazer avançar este caminho de comunhão e integração afirmativa dos católicos LGBT na nossa Igreja. Impedir que continuemos a dilacerar o Corpo que constituímos em conjunto e despertar a urgência de sarar esta ferida que sangra no seio da Igreja. Daí a profunda alegria e emoção com que encaro o nascimento do Sopro.
Tomás
Pereira
21 anos, estudante
Frederico
Lourenço
59 anos, Professor de Grego e Latim da Universidade de Coimbra
A homossexualidade é incompatível com o cristianismo?
Começo por felicitar os organizadores desta iniciativa e por agradecer a gentileza de me terem convidado a dar este depoimento pessoal.
O meu nome é Frederico; tenho 59 anos; nasci em Lisboa e sou professor da Universidade de Coimbra. A minha área é o estudo e o ensino do grego e do latim. Publiquei há cinco anos uma tradução laica do Novo Testamento e, entretanto, também vários volumes do Antigo Testamento na sua forma grega (a Septuaginta). Os meus pais eram católicos praticantes quando eu nasci e por isso fui baptizado e educado como católico.
Quando entrei na adolescência, dei-me conta de que não me sentia sexualmente atraído pelo sexo oposto: percebi e aceitei depressa que era homossexual, sem dramas interiores. Nunca tive uma relação torturada com a minha sexualidade; nunca me forcei a ser heterossexual. Como adolescente extremamente crente e cheio de devaneios místicos, aceitei de imediato que, se Deus não tivesse querido que eu fosse homossexual, ter-me-ia criado heterossexual. Não houve para mim choque entre homossexualidade e catolicismo durante a minha adolescência. Isto é, eu sabia que a Igreja não aceitava a minha sexualidade, mas isso não me afastou da Igreja nessa altura. Até porque, como adolescente, eu não tinha ainda uma vivência da sexualidade que justificasse um embate com a prática do catolicismo.
Esse embate surgiu quando tive os meus primeiros relacionamentos com namorados, embora não me possa queixar de atitudes menos compreensivas da parte dos padres com quem conversei. Apesar, porém, da compreensão, a minha necessidade de uma certa coerência interior levou-me a optar por deixar de ser católico praticante, no sentido em que deixei de me confessar e deixei de comungar, mas continuei durante uns anos a ir à missa.
Neste momento, estou afastado da Igreja há certa de 20 anos. Vejo-me, no entanto, como seguidor independente de Jesus, com simpatia em relação à Igreja Católica, mas com simpatia, também, pelas igrejas protestantes mais progressivas. Porém, o caminho para Deus, a meu ver, não passa obrigatoriamente por uma igreja cristã (seja ela qual for), nem por uma religião específica (seja ela qual for). No entanto, a ideia de comunidade cristã faz-me sentido e, por isso, não nego que me seria agradável sentir que haveria lugar para mim na igreja católica, não obstante a minha homossexualidade e não obstante o facto de eu ser casado civilmente com um homem. O meu pendor místico também me leva a desejar a maior proximidade com Jesus que está implícita na eucaristia, da qual optei por me excluir (ou da qual estou automaticamente excluído, justamente por ser casado com um homem).
A pergunta que coloco hoje a mim mesmo é: quão incompatível é a homossexualidade com o cristianismo? Sabemos que, embora nenhum evangelho canónico ou apócrifo atribua a Jesus palavras condenatórias da homossexualidade, essas palavras estão presentes nas epístolas de São Paulo. Para lá das controvérsias sobre como interpretar essas passagens de Paulo, elas podem infelizmente ser lidas como fundamento bíblico para que a homossexualidade seja punida com pena de morte, como foi, de resto, na Europa cristã, até à vinda do código napoleónico e à posterior ideia laica de que os direitos humanos pesam mais do que crenças bíblicas na feitura de legislação. Portanto, mesmo o cristão que desvaloriza a pena de morte preconizada para a homossexualidade no livro de Levítico como fazendo parte de uma realidade judaica muito antiga que já não é a nossa, esse mesmo cristão tem de se confrontar com o mesmo problema no Novo Testamento.
Como estudioso que sou da história do cristianismo, tenho procurado perceber se houve homossexuais cristãos no passado que tentaram a difícil quadratura do círculo que é ser homossexual e cristão. Sabemos da existência de uma comunidade de cristãos (a que chamaríamos hoje homossexuais) através de um autor ortodoxo do século IV (Epifânio de Salamina, na obra Panárion 26.13), que naturalmente os rotula de heréticos. Mas o facto de eles terem existido (partindo do princípio de que não são uma fantasia na cabeça do autor patrístico) sugere que eles encontraram uma maneira de compatibilizar cristianismo com homossexualidade.
Também sabemos de cristãos que se interrogaram sobre a sexualidade de Jesus: em 1550, o frade franciscano Francesco Calcagno foi condenado à morte e executado em praça pública, na cidade de Veneza, por ter afirmado que o relacionamento entre Jesus e o discípulo amado ia além dos limites da amizade platónica. A interrogação, portanto, sobre se homossexualidade e cristianismo são ou não realidades compatíveis não é uma modernice do nosso século XXI, mas é algo que tem preocupado cristãos diferentes em épocas muito diversas.
A propósito da homofobia cristã, o teólogo católico James Alison (Faith Beyond Resentment: Fragments Catholic and Gay, Norwich, 2001, p. XI) escreveu que há três palavras com as quais se pode sintetizar o modo como muitos homossexuais viveram, ao longo dos séculos, o facto de estarem inseridos numa sociedade cristã: matança (porque tantos foram mortos); suicídio (porque tantos recorreram a essa saída dilacerante); e mentira (porque a mentira foi, praticamente até aos nossos dias, a única forma de se lidar com a homossexualidade – quer a mentira de que ela não existe; quer a mentira da parte de alguns representantes da igreja, de que ela é a mesma coisa que o crime de abuso de menores; quer a mentira de todos os homossexuais que optam por fingir que o não são).
Como seguidores de Jesus, é bom estarmos empenhados em evitar tudo o que seja matança e auto-matança de seres humanos; e compete-nos rejeitar em absoluto a mentira. Só assim honraremos em pleno quem disse de si mesmo: «Eu sou o caminho e a verdade e a vida» (João 14:6).
Termino agora com a ideia de que o caminho em frente, a meu ver, no que toca à aproximação entre homossexualidade e igreja, é ver nesse processo uma atitude que favorece a vida (e não a matança e o suicídio); e que favorece, acima de tudo, a verdade.